Sala de
leitura como leitura do ensino
Jefferson André de Jesus Corredor
Em geral, as salas de leitura configuram-se como um lugar muito
específico: acima de tudo, são locais onde são guardados livros e outros
materiais impressos destinados a alunos, professores, funcionários e membros da
comunidade. E esse é um dos aspectos que podem prevalecer no uso que a
instituição escolar faz delas.
A limitação, muitas
vezes comum, ao cumprimento dessa função básica reflete a manutenção e a
administração dessas salas. A ausência de uma OSL (Orientadora da Sala de
Leitura) que possua projetos relacionados à leitura é também um problema que
compromete toda a potencialidade desse espaço.
Diante da falta de
uma proposta direcionada à leitura, por exemplo, para as séries iniciais do
Ensino Fundamental, todo um conjunto de livros que poderiam ser
disponibilizados aos alunos acaba sendo subutilizados. Digo subutilizados não
como julgamento de quem sabe como seria o “jeito certo” de se utilizar um
livro, mas como conseqüência do raciocínio de que ler um livro vai além de
tê-lo diante de si e reconhecer as letras e as imagens ali impressas.
É necessário refletir
com mais propriedade sobre que tipo de leitura será proposta pela escola e como
o devemos desenvolvê-la junto aos alunos.
Seja pelo próprio
processo que originou o projeto de salas de leitura, seja pela dinâmica da
política de ensino da unidade escolar, o que ocorre freqüentemente é que esse
espaço físico chamado sala de leitura propicia geralmente aos alunos
experiências intermitentes, vagas, se não quase nulas, com relação à leitura
vista como processo dialógico, que ao mesmo tempo pede um conhecimento
sobre o nosso estar no mundo e uma formulação sobre a construção que a escrita
nos apresenta.
Isso porque, na
escola, a prática da leitura, apesar do discurso oficial dos órgãos de educação
apontarem o contrário[1], está muito relacionada à ressignificação da linguagem
escrita na oral[2]: a base de uma atividade que poderíamos chamar de leitura
disciplinada, cujo melhor exemplo se dá nas leituras em sala de aula, mas
também nas de leitura.
Aliás, nota-se muita
semelhança entre esses dois ambientes, não apenas nas práticas que teoricamente
visam a exercitar a capacidade de leitura dos alunos. A primeira seria suas
denominações, que já apontariam para a especificidade dos espaços e para a
continuidade entre os dois: uma complementaridade da última em relação à
primeira. A segunda estaria na estruturação física dos ambientes. Outras
semelhanças seriam encontradas em relação à hierarquia e à atmosfera formal que
esclarecem que nas duas salas existe um objetivo que os alunos têm de atingir.
Alunos que não terminam a tarefa não podem escolher seus livros, os
indisciplinados são privados das aulas na sala de leitura; e, assim, a leitura
disciplinada condena ainda mais aqueles que possivelmente já estão excluídos da
simples experiência com o objeto livro, porque freqüentemente eles não querem,
ou não tentam ler (!). Ou seja, ambiguamente a leitura nas escola é tida como
direito e dever.
As atividades da sala
de leitura não escapam de outra sina das práticas de leitura na sala de
aula. De fato, elas podem mesmo ser um mero complemento à alfabetização; a
leitura, então, se limitaria ao reconhecimento da linguagem escrita, o que, a
priori, não envolveria uma verdadeira troca entre texto e leitor. Ao invés
de propor que os alunos indaguem a realidade a partir do texto, pede-se
comumente que leiam frases facilitadas, nas quais as relações entre as sílabas
sejam mais destacadas do que a ligação do enunciado à enunciação. Colabora-se
assim, de uma forma ou de outra, para a alfabetização, seja lá de que tipo, mas
não para sua leiturização.
A idéia de
leiturização, proposta por Jean Foucambert (1994), confere à leitura uma
importância dialógica que vai além das exigências fundamentais da
alfabetização, como as que se apresentam na experiência escolar, de modo geral.
Segundo ele, os pressupostos, arraigados na prática escolar, da correspondência
irrestrita entre o oral e o escrito podem conduzir a prática da leitura à
simples decifração. Essa operação, na qual compete ao leitor reconhecer os
escritos e ressignificá-los é chamada por Foucambert de oralização. Para
ele, a oralização é
"a atividade que permite constituir uma cadeia oral a partir do
escrito. Na pedagogia da leitura, essa oralização supostamente permite atribuir
sentido ao que ainda não tem. É fácil mostrar que isso é muito improvável. Três
palavras como ‘retém', ‘balbuciam', ‘quociente' só podem ser oralizadas depois
de reconhecidas e compreendidas. Esse recurso à oralização para atribuir
sentido a uma palavra nunca vista, no adulto (e na criança, se nós não
insistíssemos que ela o usasse) é a última de uma série de estratégias; e, na
verdade, nunca é utilizada, por ser incerta demais"[3].
Com efeito, a leitura
feita na sala de leitura tem freqüentemente mais de tarefa alfabetizadora do
que de prática formadora de leitores aptos a desenvolverem estratégias de
compreensão de texto. E a condição dos alunos – como alfabetizandos – não
justifica absolutamente essa limitação da leitura, pois mesmo uma primeira
instrumentalização quanto ao suporte livro, que possui suas peculiaridades, não
é desenvolvida de modo satisfatório. Se o fosse, talvez situações ambíguas como
a que foi citada acima fossem evitadas. O mesmo se dá em relação à ilustração,
algo que nos livros infantis geralmente acompanha a narrativa e cuja “leitura”
traz muito do aspecto interativo da leiturização. Como figuração da narrativa,
as ilustrações se prestam bem à função de índices textuais, explorando uma
linguagem muito significativa: a visual.
Ou seja, precisamente
esse ponto, o da compreensão do texto, que tantas e tantas pesquisas têm
apontado como um dos fracassos do nosso sistema educacional, é trabalhado nas
salas de leitura, mas de modo insuficiente, devido a essa face da “leitura
disciplinada”: a alfabetizadora.
Haveria, então, uma
íntima ligação entre um modelo alfabetizador e o tipo de leitura promovido pela
instituição escola. Mas, conforme discutiremos a seguir, há outra vertente da
leitura disciplinada que merece discussão.
Para Foucambert,
Ler significa ser questionado pelo mundo e por si mesmo, significa que
certas respostas podem ser encontradas na escrita, significa poder ter acesso a
essa escrita, significa construir uma resposta que integra partes das novas
informações ao que já se é[4].
Partindo dessa
perspectiva, a famigerada prática de “tomar a leitura” enfoca apenas um aspecto
da leitura, o mais básico, de um dos modos que mais poderiam prejudicar o
surgimento do gosto por ela: a cobrança por um significado já dado, que deve
apenas ser constatado pelo aluno e apresentado à avaliação do professor.
Talvez, um
contraponto a essa concepção alfabetizadora da leitura, tão preocupada com o
significante seja a prática da leitura que veicula o ler ao exercício da
imaginação. Assim, se na primeira a decodificação dos signos lingüísticos é
o centro da atenção, na última, é a capacidade da leitura de proporcionar à
subjetividade dos alunos um mundo fantasioso que lhes seria familiar.
Por isso, os contos
de fadas ou textos que exploram a temática da fantasia são tidos, muitas vezes,
como alternativas à “leitura mecânica”. O repertório desse gênero tem sua
história intimamente ligada à escola, como prova a compilação (e principalmente
o fato de serem adaptações) de Perrault aos contos populares tradicionais.
É dessa forma que a
leitura prazerosa é quase sinônimo de “leitura lúdica”:
A conquista do leitor acontece sobretudo no espírito de liberdade, da
aventura e do lúdico[5].
Diante das muitas atrações que solicitam às crianças hoje, torna-se necessário que o ambiente escolar – sobretudo a sala de aula – seja um lugar desejável, prazeroso. Por isso, estou convicta da não pertinência de confundir o trabalho de literatura infantil com a cobrança formal e mecânica do texto literário lido pelo aluno , pois essa prática poderia matar todo incentivo à leitura, à percepção da beleza e do encantamento da obra literária, com a conseqüente perda de seus ricos aspectos formativos[6]. (grifo meu)
Diante das muitas atrações que solicitam às crianças hoje, torna-se necessário que o ambiente escolar – sobretudo a sala de aula – seja um lugar desejável, prazeroso. Por isso, estou convicta da não pertinência de confundir o trabalho de literatura infantil com a cobrança formal e mecânica do texto literário lido pelo aluno , pois essa prática poderia matar todo incentivo à leitura, à percepção da beleza e do encantamento da obra literária, com a conseqüente perda de seus ricos aspectos formativos[6]. (grifo meu)
Entretanto, retomando
a idéia de Foucambert da leitura como leiturização, poderíamos também formular
que o que soa como um contraponto não seria antes um complemento da leitura
entendida como decodificação dos signos lingüísticos.
É nos horários
semanais de sala de leitura – onde, como diz o título do livro comemorativo dos
trinta anos do projeto, é o lugar do encantamento[7] – que se teria a
oportunidade de explorar essa leitura e, através dela, resgatar muito da
experiência dos alunos. Todavia, a atividade de leitura que contempla a
“imaginação” invariavelmente tende a ser diametralmente oposta àquela que visa
ao questionamento. Embora em ambas seja necessário que os alunos retomem dados
de suas experiências e vinculem a elas novas informações, a maneira de as duas
encararem o mundo costuma ser particularmente diferente.
Um exemplo disso foi
a atividade de “leitura simultânea” observada na sala de leitura, na qual a OSL
distribuía exemplares da mesma estória para grupos de quatro ou cinco alunos. A
primeira estória, “A bota do bode”, foi lida, ou melhor, oralizada.
Na segunda estória,
sobre uma avó que saiu para comprar um presente para seu neto, portanto um
enredo que teoricamente traria mais da realidade cotidiana, nada foi comentado
sobre todo o universo que envolvia a narrativa, ou a significação que ela
poderia ter para aqueles que a liam. Por exemplo, onde se vai para comprarmos
tais e tais artigos? Como isso se faz? Onde a avó conseguiu dinheiro para
comprar o presente? Em que condições vivem nossas avós?
O conceito, divulgado
de modo um pouco romântico, de que a leitura é o veículo do imaginário, não tem
obrigatoriamente que se furtar ao indagar; ao contrário, se se entende que é
indispensável ter prazer com a leitura, imagino que o prazer de que se fala não
seja o do leitor ao saber que B+A seja BA, ou o de encontrar na frase “o galo
deu a bota ao rato” uma construção insólita, mas sim o prazer que se pode ter
quando o que se lê tem algum significado para quem o lê, significado este
proposto, testado, comprovado ou simplesmente inferido por ele. Pois, ao
sugerir textos “lúdicos”, muitas vezes negligenciam-se outros tipos, que exigem
um posicionamento especifico por parte do docente (no caso, o OLS), como
aqueles destacados por Foucambert:
A escola deve ajudar a criança a se tornar leitor dos textos que
circulam no social e não limitá-la à leitura de um texto pedagógico, destinado
apenas a ensiná-la a ler. Então, é preciso conhecer esses escritos sociais! A
formação dos docentes deve priorizar o conhecimento sobre os escritos
utilizados pelas crianças, bem como a observação das estratégias que as
crianças utilizam, quer diante dos programas de televisão, dos textos da rua,
da publicidade, quer diante dos jornais, as histórias em quadrinhos, dos
manuais de instrução, dos documentários, dos álbuns, da ficção, etc... Deve-se
almejar, pelo menos, uma formação comparável à dos bibliotecários
especializados em publicações para a juventude, sem mencionar sua permanente
atualização[8].
Notas
[1] “Trata-se então
de trazer para dentro da escola a escrita e a leitura que acontecem fora dela.
Trata-se de incorporar, na rotina escolar, a leitura feita com diferentes
propósitos e a escrita produzida com diferentes fins comunicativos para
leitores reais. Enfim, trata-se de propor que a versão de leitura e de escrita
presente na escola seja a mais próxima possível da versão social e que, assim,
nossos alunos sejam verdadeiros leitores e escritores”. In: “As práticas
sociais de leitura e de escrita na escola”. Projeto Toda Força ao Primeiro
Ano, vol. 2, p. 10.
[2] FOUCAMBERT, Jean.
A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
[3] FOUCAMBERT, Jean. Op. Cit., p. 8.
[4] FOUCAMBERT, Jean. Op. Cit., p. 5.
[5] OLIVEIRA, Maria
Alexandre de. Leitura Prazer: interação participativa da criança com a
literatura infantil na escola. São Paulo: Paulinas, 1996, p. 25.
[6] Idem ibdem, p.
29.
[7] A esse respeito:
“Projeto Salas de Leitura – A rede municipal tem ampla e consciente experiência
com as Salas de Leitura, iniciadas em 1972. Hoje são 449 Salas de Leitura em
escolas de Ensino Fundamental e Médio, 270 em escolas de Educação Infantil,
sendo que nas Salas de Leitura das Escolas de Ensino Fundamental contamos com
mais de dois Professores Orientadores de Sala de Leitura em cada Unidade, que
são verdadeiros elos entre o mundo mágico e encantado da literatura e todas as
comunidades escolares”. In: http://portaleducação.prefeitura.sp.gov.br (Projeto
Círculo de Leituras).
[8] FOUCAMBERT, Jean. Op. Cit., p. 10.
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